Embora tenha criado mecanismos para facilitar a abertura de novas empresas, o Brasil ainda carece de normas para adequado enfrentamento das crises que afetam os MEI, os quais, segundo o boletim Mapa de Empresas divulgado pela Secretaria Especial de Produtividade e Competitividade do Ministério da Economia em 6/6/2022, representam quase 70% das empresas em atividade [1].
Esse cenário assume maior relevância diante da constatação, pela Confederação Nacional de Dirigentes Lojistas e pelo Serviço de Proteção ao Crédito, de que aproximadamente 65,19 milhões de brasileiros estavam inadimplentes em janeiro de 2023, o que equivale 40,15% da população adulta do país [2].
Para tentar debelar esse estado de coisas, surgiu a Lei 14.181/2021, que, porém, se dirigiu apenas ao consumidor pessoa física, ignorando que a atividade empresarial que se propôs exercer individualmente são faces inseparáveis para fins de responsabilização patrimonial.
Em razão disso, e diversamente do que a literalidade de suas normas parece indicar, é preciso estender a aplicação da Lei 14.181/2021 ao MEI, bem como alterá-la sensivelmente para que, de fato, sirva para enfrentar o superendividamento.
A partir dessa premissa, buscou-se examinar a legislação que rege a insolvência empresarial, assim como a produção doutrinária que a analisou e o entendimento que o Poder Judiciário brasileiro já construiu sobre o superendividamento.
A necessidade de combater o superendividamento foi percebida há mais de uma década, pois a Lei 14.181/2021 é fruto do Projeto de Lei 283/2012, que, na Câmara dos Deputados, deu lugar ao Projeto de Lei 1.805/2021, levado à sanção presidencial em 1º/07/2021. No início das discussões que resultaram na Lei 14.181/2021, o então senador José Sarney assinalou que
Em resumo, a proposta cria patamares de boa-fé e de conduta responsável dos fornecedores e intermediários na concessão de crédito ao consumidor e seu pagamento. Além desses aspectos fundamentais de prevenção e tratamento das situações de superendividamento, a proposta fornece ao aplicador da lei importantes princípios e instrumentos para realizar, de forma eficiente, o imperativo constitucional de promoção da defesa do consumidor.
Já sob os cuidados da Câmara dos Deputados, a justificativa da ementa que se propôs anunciava que a nova lei
Acrescenta ao Código de Defesa do Consumidor o capítulo “da prevenção e do tratamento do superendividamento”, com o objetivo de prevenir o superendividamento da pessoa natural e de dispor sobre o crédito responsável e sobre a educação financeira do consumidor e institui procedimento de conciliação para repactuação de dívidas do consumidor superendividado.
Em virtude dessas balizas, a Lei 14.181/2021 acabou assumindo feições mais programáticas do que pragmáticas, pois o propósito inicial de combater o superendividamento deu lugar a compromissos com a educação financeira do consumidor, as quais pouco acrescentaram em relação à Estratégia Nacional de Educação Financeira instituída pelo Decreto nº 7.397/2010 [3], renovada pelo Decreto nº 10.393/2020.
A percepção desse descompasso não só ajuda a compreender, como também explica um dos maiores deslizes da Lei 14.181/2021: a previsão de que seus comandos estão voltados apenas ao consumidor pessoa física, quando era crucial que fossem colocados também à disposição do MEI.
Como se sabe, MEI é a pessoa física que exerce atividade empresarial sob responsabilidade direta e própria, em favor de quem militam regramentos mais simplificados e tratamento tributário diferenciado. Justamente por isso, quem atua como MEI não goza da autonomia patrimonial assegurada pelo art. 50 do Código Civil e, por isso, expõe seus bens ao eventual insucesso da empreitada empresarial, como Carvalho de Mendonça dizia já no século passado [4]:
Usando uma firma para exercer o comércio e mantendo o seu nome civil para os atos civis o comerciante, pessoa natural, não se investe de dupla personalidade; por outra, não há duas personalidades, uma civil e outra comercial. As obrigações contraídas sob a firma comercial ligam a pessoa civil do comerciante e vice-versa. Se ele incide em falência, não se formam duas massas: uma comercial, compreensiva dos atos praticados sob a firma mercantil, e outra civil, relativa aos atos praticados sob o nome civil, mas uma só massa, à qual concorrem todos os credores.
Ora, se a ideia de risco é inerente à atividade empresarial e, por outro lado, o MEI necessita tomar parte em negócios com fornecedores, não há dúvidas sobre seu enquadramento como consumidor, sobretudo se considerada a sua hipossuficiência, conforme a teoria finalista aprofundada que estendeu a proteção do Código de Defesa do Consumidor às pequenas empresas, como bem sintetizaram Antonio Herman V. Benjamin, Leonardo Roscoe Bessa e Cláudia Lima Marques [5]:
Esta nova linha, em especial no STJ, tem utilizado, sob critério finalista e subjetivo, expressamente a equiparação do Art, 29 do CDC, em se tratando de pessoa jurídica que comprove ser vulnerável e atue fora do âmbito de sua especialidade, como hotel que compra gás. Isso porque o CDC conhece outras definições de consumidor. O conceito-chave aqui é o de vulnerabilidade.
Para além de configurar uma reação retardada ao senso comum de que a população brasileira carece de educação financeira e, por outro lado, padece com sucessivas crises, a Lei 14.181/2021 teve o grande demérito de ignorar, quase um ano e meio depois, o cenário que a pandemia de Covid-19 provocou, que exigia maior vigor das políticas públicas voltadas a dar suporte aos cidadãos, aos trabalhadores e às empresas.
Apesar de a Lei 14.181/2021 não se mostrar capaz de dar resposta adequada às dificuldades e desafios já existentes e que foram agravados pela pandemia de Covid-19, ainda assim não foram poucas as vozes que questionaram seu regramento, que variaram desde ilações sobre risco moral ou criação de incentivos à má-fé até o apontamento do consumidor como culpado pelo superendividamento [6].
A falta de afirmação de que o MEI também é consumidor não é o maior defeito de que a Lei 14.181/2021 padece. A despeito de outras omissões também relevantes, a Lei 14.181/2021 ignorou as circunstâncias que comumente geram o superendividamento e o perfil das pessoas por ele atingidas, o que reduz a efetividade dos arts. 104-A, 104-B e 104-C.
Segundo pesquisa do Observatório do Crédito e Superendividamento do Consumidor da UFRGS [7], os superendividados integram as camadas mais pobres da sociedade, estão de boa-fé e empenhados em sanear suas pendências, as quais derivaram de um acidente da vida, desemprego, doença familiar/pessoal, separação/divórcio, e não de riscos mercadológicos.
Outro sintoma de inaptidão da Lei 11.181/2021 reside no art. 3º do Decreto nº 11.150/2022, que, em cumprimento à regulamentação prevista no §1º do art. 54-A da Lei 11.181/2021, e já com a atualização do Decreto 11.567/2023 [8], elegeu como mínimo existencial a renda mensal de R$ 600,00 [9], que é inferior à metade do salário mínimo vigente, olvidando que a garantia de um patamar mínimo existencial adequado, enquanto pressuposto de uma sobrevivência digna, é indispensável para assegurar a recuperação da saúde financeira do MEI.
De resto, merecem críticas as exceções da parte final do § 1º do art. 104-A, pois a não sujeição de débitos de contratos com garantia real e de financiamentos imobiliários às regras de renegociação compromete a recuperação do MEI, seja porque colide com o princípio da dignidade da pessoa humana, seja porque a expropriação de imóveis, sobretudo nos moldes da Lei 9.514/1997, suprime o principal meio de que o MEI dispõe para a obtenção de crédito, sem perder de vista os efeitos decorrentes da junção desses fatores à utilização do imóvel para fins residenciais, mas sem a proteção da Lei 8.009/1990.
Quanto a esse injustificável privilégio outorgado às instituições financeiras, vem à tona a advertência de Alberto Gosson Jorge Júnior [10], para quem
Assim como qualquer outra empresa, os bancos têm sua atividade vinculada à ‘função social’ que deve ser exercitada no seio da comunidade. Por essa razão, a realização da empresa deve se ater, no contexto do princípio da livre iniciativa, aos demais parâmetros constitucionais que regem o exercício da atividade econômica, quando só então merecerá a devida tutela.
A bem da verdade, a Lei 11.181/2021 parece ter sido criada para atender aos anseios das instituições financeiras, pois ao contrário do que ocorria antigamente, o cliente superendividado deixou de representar um risco/inconveniente para ser tratado como um ativo, o que permite oferecer novas operações de crédito, com encargos ainda mais gravosos, e, por outro lado, como aproveitamento da própria torpeza, as altas taxas de inadimplência servem de justificativa para elevação das taxas de juros, como observou Zygmund Bauman [11]:
Não pode pagar sua dívida? Em primeiro lugar, nem precisa tentar: a ausência de débitos não é o estado ideal. Em segundo lugar, não se preocupe: ao contrário dos emprestadores insensíveis de antigamente, ansiosos para reaver seu dinheiro em prazos prefixados e não renováveis, nós, modernos e benevolentes credores, não queremos nosso dinheiro de volta. Longe disso, oferecemos mais créditos para pagar a velha dívida e ainda ficar com algum dinheiro extra (ou seja, alguma dívida extra) a fim de pagar novas alegrias. Somos os bancos que gostam de dizer “sim”. Seus bancos amigos.
Nem mesmo o Poder Judiciário está sendo capaz de lidar com a inoperância da Lei 11.181/2021, pois ao mesmo tempo em que se conscientizou da necessidade de uma intervenção mais incisiva nas relações com credores bancários [12], também convive com entendimentos que inibem os devedores de consignarem em juízo os recursos financeiros que dispõem sem comprometimento do mínimo existencial e os mantêm reféns de negativações [13].
Isso acaba por consolidar o desequilíbrio de forças que existe entre o MEI e os demais agentes econômicos, sobretudo os conglomerados financeiros e os fornecedores de grande porte, os quais concentram riquezas que ultrapassam até mesmo o PIB de países [14], e que, não raro, são os responsáveis pela bancarrota de negócios até então viáveis e valiosos.
Ao reforçar esse estigma, a Lei 11.181/2021 ignora os demais personagens que giram em torno dos milhões de MEI, que vão desde os consumidores que se veem privados de bens e serviços, mormente aqueles oferecidos em suas comunidades, até o próprio Estado, que deixa de arrecadar divisas, o que fulmina o ideal de preservação da empresa trazido pela Lei 11.101/2005.
Em suma, é possível concluir que a Lei 14.181/2021 representa uma resposta extemporânea e inadequada para um problema que assola a sociedade brasileira desde sempre.
De fato, o legislador mais uma vez cedeu aos interesses das instituições financeiras e perdeu valiosa oportunidade de assegurar ao MEI instrumentos concretos e efetivos para vencer o superendividamento, o que, no instante seguinte, resultará em regresso à informalidade, perda de postos de trabalho e redução das divisas tributárias.
Esse quadro nefasto é perceptível até mesmo para os leigos, pois a recuperação da atividade empresarial segundo as balizas da Lei 14.181/2021 é inviável se o MEI estiver obrigado a reservar um caixa mensal de até R$ 600,00 e destinar todo o restante a seus credores, lidando, ainda, com o risco de perder a propriedade de bens que garantem contratos que, de nenhuma forma, poderão ser renegociados.
Em outras palavras, tem-se mais um diploma legal carente de eficácia social, que há de passar por profundas modificações se o legislador realmente pretender assegurar ao MEI meios de dar continuidade à atividade que porventura for afetada pelo superendividamento.
Texto originalmente publicado no Portal Consultor Jurídico. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2024-fev-05/a-recuperacao-do-empresario-individual-segundo-a-lei-14-181-2021/.
[3] Veja-se o que dizia o art. 1º do Decreto nº 7.397: “Fica instituída a Estratégia Nacional de Educação Financeira – ENEF com a finalidade de promover a educação financeira e previdenciária e contribuir para o fortalecimento da cidadania, a eficiência e solidez do sistema financeiro nacional e a tomada de decisões conscientes por parte dos consumidores.”
[4] CARVALHO DE MENDONÇA, J. X. Tratado de direito comercial brasileiro. 6ª ed. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1957, Vol. II, p. 166-167.
[5] BENJAMIN, Antonio Herman V. BESSA, Leonardo Roscoe. MARQUES, Cláudia Lima. Manual de direito do consumidor. 5. ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2013, p. 97.
[6] Esse é o ponto de vista de Fernando Capez: “Essas são algumas das importantes modificações visando a resgatar a dignidade de pessoas que foram alijadas do mercado de consumo, por ignorância, imprudência ou incontinência de gastos, concedendo-lhe uma segunda chance, e auxiliar os credores a resgatar uma parcela do crédito que já consideravam perdido”. In Nova Lei do Superendividamento: uma rápida visão. Disponível em https://www.conjur.com.br/2021-out-21/controversias-juridicas-lei-superendividamento-rapida-visao.
[7] MARQUES, Claudia Lima; LIMA, Clarissa Costa de; BERTONCELLO, Káren. Dados da pesquisa empírica sobre o perfil dos consumidores superendividados da Comarca de Porto Alegre nos anos de 2007 a 2012 e notícia sobre o Observatório do Crédito e Superendividamento UFRGS-MJ. Revista de Direito do Consumidor. vol. 99. 2015;
[8] Em sua redação primitiva, o art. 3º do Decreto 11.150/2022 considerava mínimo existencial a renda mensal de R$ 300,00.
[9] A regulamentação instituída pelo Poder Executivo é alvo de duas ADPF, uma da Associação Nacional dos Membros do Ministério Público (ADPF 1005), e outra da Associação Nacional das Defensoras e Defensores Públicos (ADPF 1006). Para essas entidades, o Poder Executivo extrapolou os limites de regulamentação e inviabilizou a promoção e a defesa da dignidade humana da pessoa consumidora, combalindo ainda mais os mecanismos trazidos pela Lei 11.181/2021.
[10] Estruturação normativa da responsabilidade civil dos bancos por meio de cláusulas gerais e paradigmas para sua aplicação concreta. In GUERRA, Alexandre; BENACCHIO, Marcelo (Coord.). Responsabilidade civil bancária. São Paulo: Quartier Latin, 2012, p. 107.
[11] BAUMAN, Zygmund. A ética é possível num mundo de consumidores? Trad. Alexandre Werneck. Rio de Janeiro: Zahar, 2011, p. 30.
[12] TJSP; AI 2097523-12.2022.8.26.0000.
[13] TJSP; AI 2293208-54.2022.8.26.0000.
[14] É o caso do Walmart, cujas receitas são superiores a de 25 países; a Exxon, por sua vez, tem faturamento maior do que o PIB da Suíça, conforme apanhado feito por Eleonora de Lucena. Disponível em http://www1.folha.uol.com.br/fsp/mercado/60046-consultor-mostra-historia-do-poder-das-grandes-corporacoes.shtml.