Em caso de inércia ou ineficácia estatal, ações de indenização podem ser ajuizadas, à luz da legislação própria para o tema, e com base na realidade fática e probatória de cada caso.
De uma maneira geral, o desastre não é só o evento ambiental, físico, tecnológico ou antropogênico em si (o deslizamento de terra, a inundação, o rompimento da barragem, por exemplo), mas também todo o conjunto de causas e consequências a ele vinculado. Daí a necessidade de entender o desastre como um processo, e não um fenômeno isolado.
Até por isso, muitos defendem que a expressão “desastre natural” merece ser substituída por “desastre socioambiental”, retirando o aspecto “incontrolável” e inserindo, já no cerne da expressão, a noção dos impactos diretos à sociedade e ao meio ambiente envoltos nessa dinâmica.
Ato contínuo, quando falamos em desastres (socioambientais), devemos pensar imediatamente em ações de prevenção, mitigação, preparo, resposta e reconstrução decorrentes desses eventos, consoante disposto no caput do art. 3º da lei Federal 12.608/12, legislação que institui a Política Nacional de Proteção e Defesa Civil, dispõe sobre o Sistema Nacional de Proteção e Defesa Civil, autoriza a criação de sistema de informações e monitoramento de desastres, altera outras normativas atinentes, dentre outras providências.
Tal legislação é muito relevante para o tema, mas, ao mesmo tempo, tão pouco estudada.
Sem prejuízo da necessidade de maior aprofundamento do que significa cada uma das fases e ações mencionadas no parágrafo anterior, este curto artigo visa comentar sobre um tópico não adequadamente discutido no âmbito jurídico, mas que precisa receber maior atenção: a responsabilização civil extracontratual do Estado (lato sensu) pela omissão em casos de desastres socioambientais, em especial, dos municípios.
Independentemente da aplicação da teoria da responsabilização civil extracontratual objetiva do Estado nesses casos, à luz do § 6º do art. 37 da Constituição Federal, ou da já consolidada jurisprudência dos tribunais superiores sobre o tema, fazendo incidir a vertente subjetiva da responsabilização por atos omissivos, fato é que os entes federados possuem deveres específicos na gestão dos riscos e gestão dos desastres socioambientais. Assim, a própria análise do nexo de causalidade entre o ato (comissivo ou omissivo) e o dano tem que se atentar, também, ao que era exigido ser feito nessas ocasiões.
A referida lei Federal 12.608/12 estabeleceu competências específicas à União (art. 6º), aos Estados (art. 7º) e aos municípios (art. 8º), além de competências conjuntas entre esses entes (art. 9º), principalmente por compreender as díspares capacidades institucionais entre todos, decorrente do pacto federativo vigente, no qual os municípios, em regra, dependem de constantes repasses de recursos financeiros dos demais entes federados.
Tratando justamente do município, a ele foram repassados os deveres mais capilares, pois é este ente que melhor conhece, ou deveria conhecer, as vulnerabilidades e riscos locais. Dentre tais competências, podemos citar:
No entanto, o que mais se vê em todo o país são municípios inertes frente às chances de ocorrência de desastres socioambientais. Tem-se um cenário geral de ínfima previsão orçamentária destinada às ações diretas de prevenção de ocorrência ou mitigação de vulnerabilidades, defesas civis municipais inoperantes, ou com baixo número de agentes, pouco treinados para ações que não as de resposta, além de baixa articulação entre setores da administração pública municipal, entre ela e a sociedade civil, e escasso diálogo e planejamento integrado intra e interfederativo. Raros municípios excetuam-se a esse cenário.
Embora a limitação financeira, tecnológica e de quantidade de servidores públicos seja um real óbice ao cumprimento dos deveres impostos, entes públicos locais tão pouco buscam submeter projetos para financiamento estadual ou federal de programas ou obras vinculados ao tema.
Curiosamente, o mesmo gestor público inerte é aquele que, logo após o início de um desastre socioambiental, corre às redes sociais e à mídia tradicional para defender que o evento ocorrido era “imprevisível”, “inevitável”, “que o município não tinha recursos para enfrentá-lo” e, em muitas ocasiões, ainda utiliza a oportunidade para culpar os atingidos por morarem, trabalharem ou transitarem em áreas de risco. Nem de longe aborda as medidas que deveria ter tomado, mas não as realizou, muitas das quais não demandariam vultosos recursos financeiros para a sua execução. O mesmo modus operandi se aplica aos vereadores que não fiscalizam as ações do Poder Executivo local, seja por desconhecimento do tema, seja por cumplicidade política.
Inclusive, tais argumentos de não assunção de responsabilidade costumam ser replicados por procuradorias municipais em processos judiciais que discutem a responsabilidade civil extracontratual por omissão dos municípios nesses cenários, tornando pobres as discussões jurídicas a respeito das causas e consequências do desastre socioambiental, sobretudo quando o advogado da pessoa atingida não contrapõe adequadamente tais teses.
Cumpre ao jurista que atua em questões envolvendo desastres socioambientais compreender que muito pode e deve ser feito pelos entes federados, consoante deveres expressos na referida lei Federal 12.608/12 e tantas outras que tratam de aspectos específicos do tema, tais como Estatuto da Cidade, lei de regularização fundiária, lei de parcelamento do solo urbano, lei 12.340/10, além das legislações em âmbito estadual e municipal.
Nutrir o processo civil com dados objetivos sobre o evento, comprovação dos danos causados e as normativas aplicáveis ao tema, relacionando o que deveria ser feito e o que não foi, é necessário para passarmos a uma discussão fundamentada sobre a omissão dos entes federados no enfrentamento ao desastre socioambiental, trazendo luz ao tema e demonstrando que o evento em si e seus danos gerados não são “naturais”, podendo ser evitados ou mitigados.
A indenização a ser aplicada em casos de ações reparatórias, além de justo ressarcimento à vítima do desastre socioambiental, servirá como efeito “pedagógico” para o Estado (em sentido amplo) entender que a sociedade civil não mais aceitará que discussões sobre gestão de riscos e de desastres socioambientais sejam reduzidas a teses ultrapassadas, e que a inércia estatal será cada vez mais demonstrada em processos judiciais que tratem do tema.
Texto originalmente publicado no Portal Jurídico Migalhas. Disponível em: https://www.migalhas.com.br/depeso/407655/responsabilidade-civil-extracontratual-dos-municipios-em-desastres.